PANORAMA BRASIL-PORTUGAL EM MOVIMENTO

Panorama Brasil em Movimento

Panorama Brasil-Portugal em Movimento

domingo, 6 de dezembro de 2009

Das perspectivas descoloniais no espaço público urbano: arte de rua e subjetividades periféricas em movimento



Rosana Martins. Cientista Social formada pela Universidade de São Paulo- USP. Mestre e Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes/USP. Autora dos livros: Hip-Hop. O estilo que ninguém segura (Esetec, 2006); Admirável Mundo MTV Brasil (Saraiva, 2006); Direitos Humanos Segurança Pública & Comunicação (Acadepol, 2007). Curadoria do Projeto Urbanidades em Movimento Casa do Lago/Unicamp – Setembro/Outubro. Atualmente é pós-doutoranda e pesquisadora do CIMJ – Centro de Investigação Media e Jornalismo, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, e pesquisadora do Centro de Estudos Cibernética Pedagógica - Laboratório de Linguagens Digitais -Universidade de São Paulo/Escola de Comunicações e Artes - São Paulo/Brasil


Resumo
O espaço público urbano demanda sentido e materializa significações na relação com o sujeito, com a história e processo de cidadania. Num mundo notoriamente dinâmico a cultura contemporânea privilegia uma relação com esse espaço diretamente ligado ao crescimento das mediações e, em particular, ao crescimento das tecnologias da comunicação e da informação.
Em tempos atuais o processo de globalização vem fornecendo novas configurações identitárias, o que nos leva a análise das relações do sujeito com o global/local e o fenômeno da fragmentação dos espaços urbanos.
Propõe-se uma perspectiva epistemica proveniente do lado da diferença que possibilite um contributo a este debate, visando transcender dicotomias delineadas na redefinição do próprio espaço público urbano e do sistema-mundo.
O artigo defende a necessidade da reconstrução do sistema de significações simbólica a partir de políticas de reconhecimento que age como um catalisador e estimula a participação e pertença social. Buscamos elucidar as dimensões socioculturais e políticas da apropriação social dos espaços urbanos no Brasil pela arte de rua, e também a comunicabilidade de brasileiros pelo mundo no que diz respeito ao diálogo transfronteiriço que a arte de rua possibilita.
Uma abordagem assim passa pela discussão da noção de cidadania e da ação política pela análise da acessibilidade. Esta última está estreitamente vinculada, na demarcação dos territórios urbanos, identidade e à alteridade.


PALAVRAS-CHAVE:
Espaço público urbano, metrópole, mídia, arte de rua, acessibilidade, apropriação, diferença identidade, pertencimento, descolonização



O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo” que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de tradução cultural
Homi K. Bhabha. O local da cultura[1].




“Eu ignoro que faz um berro tão sonoro.Nem por isso meu gritodeixará de soar como a voz de um mito.

Eu me abstenhoda explicação do brilho do desenho.Nem por isso meu traçodeixará de fluir como um rio de aço...”
Pedro Vicente (trecho do poema Lama de Estrela)







Recentemente, assistimos a uma verdadeira transformação estrutural do espaço urbano seja no seu entendimento mais lato, enquanto espaço de visibilidade pública, seja no seu entendimento normativo, como instância de comunicação política aonde é colocada à questão da legitimidade do poder.
Uma nova relação espaço-tempo domina o mundo contemporâneo, onde a efemeridade transforma a cidade em um instantâneo, onde novas formas urbanas se constroem sobre outras, com profundas transformações na morfologia, o que revela uma paisagem em constante transformação.
O atual contexto social tem sido determinado por mudanças substanciais em todas as esferas da atividade humana. Estamos passando por um processo de redefinição de uma série de conceitos, valores e princípios que até a muito pouco tempo, sequer eram questionados.
Os tempos atuais, os tempos pós-modernos (para alguns), causaram um estado de transformação na sociedade humana, de acordo com o estudo de Bauman (2001), havendo uma modificação do estado sólido para o líquido. Este estado de fluidez não é apenas econômica (que transfere em questões de segundo volumes de capital de um canto do mundo a outro, ou de uma empresa que se instala em um país e dele migra tão rápido quanto entrou), ou política (mudanças contínuas de legislação, leis de patentes, fim dos direitos adquiridos dos trabalhadores, crise dos partidos tradicionais de esquerda e de direita, etc.), ela também se reproduz nas demais áreas da vida humana: nas relações pessoais e na vida cotidiana.
Segundo Manuel Castells (2000) a nova morfologia da sociedade atual, denominado por ele de sociedade em rede, está ligada à expansão e reestruturação do capitalismo desde a década de 80, a partir do desenvolvimento das novas tecnologias da informação, sob a ênfase na flexibilidade sobre a capacidade de reconfiguração do sistema e sua maior disponibilidade para incorporar mudanças.
A presença das mediações, que cresceu com as formas de desenvolvimento das nossas sociedades e da nossa cultura informacional distanciou-nos e ofereceu-nos um outro espaço fazendo-nos literalmente viajar para além das fronteiras do nosso território demarcado geograficamente. A noção espaço hoje culmina nas diversas categorias presentes de pensamento que nos auxiliam no entendimento da articulação social e territorial das sociedades contemporâneas - espaço virtual, ciberespaço, desterritorialização, deslocalização e nomadização, espaço dos fluxos, rizomatização do espaço.
Na contemporaneidade, estamos vivendo os múltiplos efeitos de um mundo cada vez mais complexo, com avanços tecnológicos, mas também com antagonismos, contradições, conflitos, formas de inclusão e exclusão de seus sujeitos/agentes.
Stuart Hall (2000), ao fazer menção ao autor Ernest Laclau, acentua os aspectos positivos do espaço-tempo contemporâneo: desarticula as identidades fixas e estáveis do passado, mas, porém abre perspectivas para novas articulações que permitem a criação de novas identidades e a produção de novos sujeitos que se recompõem em torno de pontos nodais particulares de articulação ou “pluralidade de centros de poder”.
Nesse contexto, as metrópoles são inundadas por relações que levam a reconfiguração de referenciais individuais que passam a ser cada vez mais anseios coletivos, a partir do processo de diálogo incessante de novas formas de sentir e vivenciar os espaços públicos urbanos. Se, para Michel de Certeau (1994), a cidade é também um espaço de escritura, os grandes centros urbanos mundiais estão sendo rescritos cotidianamente.
Os muros, paredes e postes dos espaços urbanos enchem nossos olhos com mensagens seja vindo da arte dos grafites, pichações ou stickers. As ruas, as esquinas dos espaços urbanos das metrópoles servem também de palco para a performance de dançarinos de break e rappers[2]. As novas formas de sociabilidade que se gestam, desenvolvem relações de amizade e lazer, e enfrentam também os mecanismos da violência urbana na luta pela sobrevivência, no confronto diário com os aparelhos repressivos.
Na concorrência com os anúncios publicitários, políticos, com as arquiteturas, sinalizações de toda espécie, esse tipo de prática ganha vida nas metrópoles contemporâneas e acabam por reorganizar nossa realidade. Como nas sepulturas e nas pinturas pré-históricas, essa escritura traz um discurso imaginário em imagens dos sonhos e da repressão de uma sociedade (Certeau, 1994).
Nestes espaços urbanos buscam-se construir identidades coletivas e diversas modalidades de sociabilidade através das práticas culturais artísticas que incidem sobre usos diferenciais do espaço e espelham os ritmos desiguais que caracterizam não só as relações entre as classes, mas a dinâmica das gerações. O espaço público pode se tornar a expressão de conflitos multifacetados, capazes de oferecer novas possibilidades de apropriação do tecido urbano.
Habermas (1984; 1987) define a esfera pública como um espaço de livre acesso, onde os cidadãos se encontram para debater e, racionalmente, desenvolver argumentos sobre questões da vida comum, diferente das questões levantadas por sindicatos ou por partidos políticos, as quais costumam referir-se a interesses não exatamente coletivos.
Nesse sentido, pensamos o espaço público urbano como arena de argumentação discursiva, enquanto terreno de visibilidade e legitimidade, onde os sujeitos podem ser movimentar e expor suas idéias ao buscar explorar e ampliar as possibilidades comunicativas. Nesse âmbito, potencializa a multiplicação de dinâmicas identitárias com opções culturalmente plurais. O espaço público urbano, por conseguinte, é isto: um conjunto de formas contendo cada qual frações de subjetividades em movimento.






=inscrições da nova era =
3 eye invasion art-action






O artista visual urbano da contemporaneidade é o espelho da vida metropolitana: experimenta a cidade como homem da multidão, e se insere no fluxo constante de pessoas, veículos, informações, imagens. Por meio das intervenções urbanas, refaz sua relação com a metrópole; transforma paredes, muros, postes ruas e esquinas em territórios de afetividades, de comunicabilidade, de histórias. Essas intervenções documentam situações, estilos de vida, revelam e alimentam imaginários, afetos, medos, desejos, frustrações. São formas de expressão que resistem à homogeneização e à indiferença da das grandes cidades.
Nota-se na sociedade de hoje uma compreensão do homem enquanto ser relacional e aberto a uma autonomia heterônoma, ou seja, uma autonomia regida pela alteridade.



3 eye 4 ever
Pela vista tríplice


Multiplica-se o nexo.


Pelo gosto complexo


Explica-se o índice


Tão imenso


De tudo que é denso.


Por isso sugiro


Simplicidade


Enquanto respiro


Pela cidade.
espacialidade, cotidiano e poder

Pedro Vicente Alves Pinto[3]

Uma máscara de palhaço, três olhos, um sorriso, solução gráfica concisa. Um símbolo visual de consciência e alegria: o Triolho, 3eye, ou Dharma Clown. A criação deste símbolo, a propagação do mesmo, o registro desta propagação em desenho, pintura, intervenção urbana, arte-guerrilha, grafite, fotografia e vídeo. Esta é a proposta do trabalho do artista brasileiro Pedro Vicente Alves Pinto de intervenção no espaço público urbano mundial, iniciado em março de 2008.
Na cidade, onde os múltiplos signos visuais presentes delineiam o horizonte do espaço urbano, o artista convida a uma espécie de impulso empírico de busca de outras possibilidades para o self na diversidade humana - a possibilidade de renovar a experiência e ampliar reflexivamente e o auto-conhecimento através da resssacralização dos signos.
A esse respeito, Massimo Canevacci descreve: “a cidade em geral e a comunicação urbana em particular comparam-se a um coro que canta com uma multiplicidade de vozes autônomas que se cruzam, relacionam-se, sobrepõem-se umas às outras, isolam-se ou se contrastam...” (1997, p. 17).
O artista Pedro Vicente retrata a perspectiva do pedestre diante do símbolo grafado em muros, postes, cabines telefônicas, pontos de ônibus, etc., como registro da proposta de uma visão do espaço urbano como reflexo de uma realidade na qual "tudo se encaixa e se interpenetra”.
Invasão Berlim (imagem1)
Ao enfatizar a relação do artista com os signos visuais do cenário urbano, constatamos que a polifonia de apelos discursivos, contidos nos espaços da metrópole, nos remete a reconstrução do campo simbólico - o sentimento e a re-descoberta - em nova dimensão, da relação do homem com a urbanidade e possibilidade de transformação do self disponíveis para a auto-transformação.
A respeito da experimentação subjetiva do espaço, ao refletir sobre o papel do ator na esfera social, o sociólogo francês Alain Touraine salienta:

“...o ator não é aquele que age em conformidade com o lugar que ocupa na organização social, mas aquele que modifica o lugar que ocupa na organização social no qual está colocado...” (1994, p.220).

Através de sua intervenção o artista convida o indivíduo a refletir sobre o imaginário que marca a vida social cotidiana. Suas intervenções pontuam o fluxo da metrópole, ao transformar o espaço público urbano em palco de reflexão.






Invasão Praga















Ao propor uma nova relação com a cidade Pedro Vicente pretende estimular possibilidades de apropriação possíveis do espaço público urbano de forma múltipla, intensa e reflexiva.
Neste momento, parece central recuperar a reflexão lefebvriana acerca da produção do espaço: é necessário entender não apenas como os lugares adquirem qualidades materiais, mas também como adquirem valor simbólico mediante atividades de representação (Lefebvre, 1991). Na sua obra, “A Produção do Espaço”, Lefebvre inseri as relações de classes nas contradições configuradoras do espaço socialmente organizado. O autor afirma que nenhuma revolução social pode ter êxito sem ser, ao mesmo tempo, uma revolução conscientemente espacial.
Através da cultura baseada em imagem, como a televisão, a publicidade etc., vemos predominar a "estetização da realidade" - expressão que Fredric Jameson (1996) toma emprestado de Walter Benjamin -, cuja arte se mistura indissoluvelmente à compra e venda de produtos. De acordo com Guy Debord (1997), a imagem é a forma final da reificação – isto é, a derradeira realização do capital, fundamento da atual sociedade do espetáculo.
Na obra de Walter Benjamim (1989), a multiplicidade signica da metrópole e a experiência do sujeito se relacionam dialeticamente. Na figura ambígua do flâneur manifesta-se a dialética da metrópole, em que convivem o lado alienante da mercadoria e o lado emancipatório das fantasmagorias modernas.
A cidade, cenário contraditório e polifônico, palco de múltiplos diálogos que, entre o acordo e o desentendimento de seus discursos, deixa entrever os espaços de ação e intersubjetividade. Em lugar de reificação e submissão imediata à uniformidade dos sentidos, temos o dialogismo e a apropriação reflexiva.
O espaço urbano estabelece o sentido negociado que contempla a competência comunicativa no ato da interação. No estudo da recepção, Barbero (2003) vê o processo de recepção compreendido como espaço relacional onde são tecidas as mediações que possibilitam aos sujeitos fazer usos diferenciados dos produtos com os quais interagem.
Através da percepção de Pedro Vicente, o espaço urbano se configura no lugar de efervescência simbólica, dada à diversidade de situações nela experimentadas pelo olhar do artista.

“...Há muitos anos sinto necessidade de expressar algo que percebi ser impossível de verbalizar. Esta necessidade me inspirou a criação de um símbolo visual, já que um símbolo significa exatamente algo que não se pode definir. Um símbolo capta e expressa algo transcendente, por isso transforma. O entusiasmo por esta idéia me levou a realizar este projeto (...) Minha expectativa é tocar sutilmente os transeuntes que por acaso pousem os olhos sobre o símbolo do Triolho em alguma esquina, transmitindo ao seu inconsciente a idéia de que a consciência se expande pela alegria e vice versa. Acredito que o projeto Invasão dos Triolhos propõe algumas reflexões: sobre a qualidade das mensagens veiculadas no espaço urbano, e sobre a qualidade da consciência do indivíduo moderno e da coletividade como um todo..”[4]

Os espaços urbanos, registrados pelo artista, são repletos de signos visuais e oferecem elementos que tanto refletem os sentidos já instituídos quanto a ação que possibilita a articulação de novas estruturas discursivas, novas representações de sentir e vivenciar espaço público urbano.
Jesús Martín-Barbero (2003) define este espaço negociado de significados como uma área de zona de mediações.

Os espaços da metrópole passam a ser reinventados por dinâmica de interações de mudanças contínuas onde tudo pode ser criado, recriado e retrabalho no decorrer do processo histórico-cultural

Invasão Amsterdam (imagem 3)

Nas reproduções e originais dos stickers[5] em preto e branco fixados nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Nova Iorque, Praga e Ostrava, Zurique e Basiléia, Amsterdã, Utrecht, Oslo, Frankfurt e Berlim, o artista visual brasileiro compõe sua obra de intervenção urbana, no diálogo que transcende as fronteiras nacionais-brasis. O visível e o invisível, o padrão e o caos, se comungam ritualisticamente e ininterruptamente declaram: há mais a ser visto do que enxergamos normalmente.
A apreensão dos sentidos pelo artista revela uma atividade discursiva dinâmica com o espaço polifônico e heterogêneo da urbe. Na leitura do antropólogo Victor Turner (1974), a categoria multivocal, que o artista realiza, se prestaria a definir um espaço ou um contexto de tal forma aberto e evocativo que poderíamos construí-lo socialmente, ou percebê-lo com tal versatilidade que não seria possível estabelecer com precisão o seu significado, mas apenas constatar as diversas formas expressadas nos diferentes contextos.

A performance do artista preconiza as diversas oportunidades de explicitação do espaço público urbano, assim como a reflexão sobre a apropriação desse mesmo espaço, na medida em que destaca vivências múltiplas onde nos possibilita refletir sobre culturas urbanas e múltiplas interfaces.



=olhares polifônicos=

Women Are Heroes

Desde 2004, o fotográfo francês J.R. (que não revela o nome) tem trabalhado no projeto em 28 millimeters, que visa fotografar mulheres com que ele deseja compartilhar as dolorosas histórias de sofrimento e testemunhar a vontade de viver destas pessoas. O Brasil faz parte da 3ª parte do projeto. A 2ª foi no Oriente Médio. Este projeto já passou por países como Sudão, Serra Leoa, Quênia, Libéria, Índia, Camboja, Laos e Marrocos.
Além da exposição a céu aberto onde inclui a proposta em criar em lugares onde não existe arte, seu trabalho inclui um registro fotográfico de todo o processo e um documentário. Parte do material já está nos sites http://www.womenareheroes.be/ e www.jr-art.net/.
A metrópole, nas suas contradições, comporta formas discursivas dissonantes, que revelam o imbricamento entre sistema e mundo da vida. Na contemporaneidade, ao lado do desenvolvimento econômico e tecnológico, explicitam contrastes - impactos da pobreza, da falta de habitação e serviços, da presença de uma grande massa de excluídos. J. R. chama atenção para imagens urbanas que nascem dos sussurros das periferias sociais, das distintas formas de exclusão, e consolidam espaços de luta pela dignidade humana. O espaço retratado é devolvido ao olhar aos habitantes-marginais.
A compreensão da cidade a partir da sensibilidade e emoções dos habitantes conclama vozes que não encontram eco ou expressão no mundo sistêmico. As cartografias da vida urbana inscritas nessas obras e no próprio habitante, revelam e denunciam o que o projeto urbano exclui.
A produção social do não olhar dá margem na obra de J.R. ao surgimento de imagens que agora apelam ao sujeito de diálogo e a noção de pertencimento público ao realçar, sobretudo um horizonte pautado pela gramática da inclusão.
Serra Leoa (imagem 1)
Pretende-se pensar a urbe para além da idéia de fragmentação e, perceber como a cidade, através de seus habitantes, possibilita a leitura partir da narrativa do outro. Se, por um lado, revelam-se excluídos de inúmeras formas, por outro, expressam-se no espaço por meio de fatores que se objetivam na direção da valorização de si, num processo de identificação que se traduz na dialética diferença/igualdade.
Assim relata J. R.:
“A clássica imagem das mulheres africanas na imprensa é a de pessoas muito tristes, vivendo em extrema pobreza (...) Quando vamos até lá, descobrimos que elas passam por tudo isso com extrema dignidade. A maioria dos homens morreu na guerra e elas estão à frente da comunidade, lutando por suas famílias”. [6]
O Morro da Providencia (Brasil), considerada oficialmente a primeira favela[7] do Rio de Janeiro, que fica atrás da Central do Brasil, voltou a ter espaço na imprensa, mas não como de costume pela violência[8], mas através do trabalho artístico de um fotógrafo francês, J.R.
Fotos em preto-e-branco gigantescas de moradores da favela da Providência, cobriram encostas e fachadas de casas ao longo do morro. Fátima Barbosa, 48, e Dona Benedita, 68, mãe e avó de dois jovens que a policiais militares do Rio de Janeiro entregaram a 11 traficantes de drogas (da facção rival) e que foram executados, tiveram seus rostos nas fotos gigantescas colocadas em uma das escadarias da favela.

Morro da Providencia/Brasil (imagem 2)

A intenção de J.R. ao fotografá-las, e imprimir os rostos em lambe-lambes de grandes dimensões, foi retratar os personagens que moram em áreas de conflito destacadas pela mídia e que por ela são estigamatizados.
Uma geografia dos conflitos socioespaciais localizados é também uma geografia das confrontações locais de poder, na qual o filosofo Michel Foucault (1995) foi lançando alguns elementos de problematização, na temática de uma verdadeira “microfísica do poder”. Segundo ele onde há poder, há necessariamente também resistências que são dos seguintes modos: espontâneas, selvagens, violentas, etc. E, como essas lutas são distribuídas em pontos e focos de formas irregulares, há, de fato, uma geografia muito específica dos conflitos localizados, e os movimentos socioespaciais são assim pensados em sua espacialização e territorialização.
A socióloga brasileira Lícia Valladares (2005; 2000) questiona se faz sentido manter o discurso midiático que faz da imagem favela o próprio símbolo da segregação espacial, isto é, o território por excelência da pobreza.
Para tanto, a esfera midiática, situada em esquemas de produção massiva e do consumo globalizado, pode introduzir alterações nos modos de existência, ao conceber formas equivocadas de informação e que podem incitar a produção e reprodução de imaginários.
No livro Televisão Levada a Sério, o estudioso brasileiro Arlindo Machado (2005), que ressalta a leitura da mídia não distanciada das relações de poder do mundo globalizado, defende a posição do telespectador, enquanto receptor vivo e ativo, como ator do processo de comunicação, situado na dinâmica interativa de interpretação dos significados, que criticamente analisa os efeitos comportamentais estimulados pelos meios de comunicação.
De acordo com este ponto de vista, não correspondente a idéia de homogeneização, entendemos que reduzir as favelas a espaços de pobreza, como uma outra metade da cidade, a cidade informal encravada na cidade formal, nos parece equivocado. Tal leitura nada mais é que aceitar uma visão dualista e desconhecer a interdependência e a complexidade dos elementos estruturadores da cidade.
É importante assinalar que o termo favelado, originalmente qualificativo de lugar, passou a ser uma classificação social. Nesse caso o morador da favela pertence ao mundo dos problemas sociais. Com a crescente difusão da imagem da favela como espaço social de enclave, parece reafirmar a idéia de que a pobreza engendra a pobreza, e a pobreza engendra os problemas sociais.
Esta tendência reducionista, sobretudo através dos meios de comunicação, de interpretações provoca falsos juízos e estimula (re)ações indiferentes além de ensejar demandas de políticas públicas ineficientes, freqüentemente desrespeitosas dos direitos humanos e produtoras de efeitos indiretos desastrosos.
Para J.R., as ruas são galerias de arte universal e um verdadeiro cenário urbano. Em suas obras temos a valorização de espaços segregados no intuito de estabelecer a consciência crítica e mostrar ao mundo o sentimento de “pertencer a”, de se pensar como parte integrante de uma identidade coletiva maior.
A abolição da distância entre observador e objeto constitui o nó central na percepção do Outro - caracterizada pelo compartilhamento de crenças, valores e experiências em comum. O campo constitui uma espécie de rito de passagem (Da Matta, 1987) ou de estado alterado de consciência e de que dificilmente passa por esta experiência sem sair profundamente transformado.
Assim, procuraremos entender a cidade para além das inscrições geradoras de estereótipos e estigmatizações, mas como produtora de sentidos, geradores de espaços de sociabilidade, de um “estar junto” comunitário.
A partir desse ponto de vista temos a dinâmica territorial registrado pelas lentes de J.R. como espaços da cidadania, espaços concretos, espaços de vida, espaços de direito que re-territorializam a subjetividade.
A proposta de J.R. é mostrar as particularidades das comunidades, a vida cotidiana para além da pobreza. Desestigmatizar a imagem que se têm: diagnóstico higienista aplicado à favela e seus moradores – idéias de doença, de mal contagioso, de patologia social, lugar da violência, do perigo, da criminalidade, do tráfico. Podemos dizer que há grande ênfase também na necessidade de “deixar o campo falar”, ou seja, estar sensível às questões “colocadas pelo campo” (Oliveira, 2000).
A propósito do olhar etnocêntrico e homegeneizador, J.R questiona a visão segundo o qual a favela apenas seria lugar de ausência e exclusão. A partir disso, o artista apresenta outra perspectiva vista como lugar em que se estabelecem interações sociais, aspirações de vida, visões de mundo, quadros de referência a ser compartilhados, moralidades, sentimentos, pertença comunitária.
JR/França


Pedro Vicente/Brasil
Tanto o trabalho de J. R. quanto o do artista Pedro Vicente, ao seu modo, ganham corpo a partir do instante em que se tornam “outro” corpo. Tentam retirar o espectador da posição passiva, convidando a discussão e a interferência na arquitetura da cidade. Dessa relação entre o corpo do cidadão comum transeunte das grandes metrópoles e esse “outro corpo urbano” agora refletido na obra dos artistas, pode-se surgir uma outra forma de apreensão urbana, e, consequentemente, de reflexão e de intervenção de subjetividades na cidade contemporânea.
Assim, refletir sobre as diversas formas de representação no espaço público urbano, significa contemplar o universo simbólico presente na dinâmica social, e que revela a ampla articulação das formas e praticas culturais que organizam a vida diária - as experiências, os modos de vida, os cenários cotidianos e as sensibilidades. Sem dúvida esta experiência opera no registro sensível como busca pela expansão da consciência, da auto-exploração e do autoconhecimento humano.


Por uma epistemologia de fronteira

Há importantes campos teóricos que alicerçam, desde há muito, a hipótese de indiferenciação, ou, noutros termos, de massificação dos indivíduos na sociedade. Isso acontece no quadrante teórico-ideológico da Escola de Frankfurt como Adorno e Horkheimer (1986), no quesito da indústria cultural, ou como Marcuse (1967), com o seu "homem unidimensional"; ou ainda, para dar apenas mais um exemplo, com as teses de George Ritzer (1993) sobre a "mcdonaldização” da sociedade.
Nesse artigo discutimos a contribuição teórica-política dos Estudos Culturais e seu enfoque sobre a dimensão cultural contemporânea - uma perspectiva que enfatiza a atividade humana, a produção ativa da cultura, ao invés de seu consumo passivo.
Stuart Hall (1997) está convicto de que a cultura "não pode mais ser estudada como uma variável sem importância, secundária ou dependente em relação ao que faz o mundo mover-se; tem de ser vista como algo fundamental, constitutivo, determinando tanto a forma como o caráter deste movimento, bem como a sua vida interior" (p.23).
A cultura, não é totalmente explicada pelas determinações da esfera econômica e também não é uma entidade homogênea, mas, manifesta-se de maneira diferenciada em qualquer formação social ou época histórica e, abarca um grande número de intervenções ativas, por meio do discurso e da representação.
Os Estudos Culturais surgem através do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), diante da alteração dos valores tradicionais da classe operária da Inglaterra do pós-guerra. Inspirado na sua pesquisa, The Uses of Literacy , Richard Hoggart funda em 1964 o Centro. Ele surge ligado ao English Department da Universidade de Birmingham, constituindo-se num centro de pesquisa de pós-graduação da mesma instituição. As relações entre a cultura contemporânea e a sociedade, isto é, suas formas culturais, instituições e práticas culturais, assim como suas relações com a sociedade e as mudanças sociais, vão compor o eixo principal de observação do CCCS.
A perspectiva marxista contribuiu para os Estudos Culturais no sentido de compreender a cultura na sua "autonomia relativa", isto é, ela não é dependente das relações econômicas, nem seu reflexo, mas tem influência e sofre conseqüências das relações político-econômicas. Existem várias forças determinantes - econômica, política e cultural - competindo e em conflito entre si, compondo aquela complexa unidade que é a sociedade. Os Estudos Culturais questionam o estabelecimento de hierarquias estabelecidas a partir de oposições como cultura alta/baixa, superior/inferior, além de outras binariedades possíveis.
Os Estudos Culturais britânicos devem ser vistos tanto do ponto de vista político, na tentativa de constituição de um projeto político, quanto do ponto de vista teórico, isto é, com a intenção de construir um novo campo de estudos.
Nesse sentido, salientamos alguns aspectos importantes levantados pelo campo epistemológico dos estudos culturais: 1) a exigência de um cânone de pensamento mais amplo do que o cânone ocidental e que abarque a visão Sul Global – do ponto de vista dos subalternizados; 2) uma perspectiva descolonial resultado de um diálogo crítico apontando um mundo pluriversal e não a um mundo universal.
Esse pensamento que intitulamos de “fronteira” é, precisamente, uma reescritura crítica periférica da história – do Sul - que condena quaisquer preceitos de pretensas verdades e universalismos. Os Estudos Culturais se constituíram como um projeto político de oposição, e suas movimentações continuam acompanhadas de discussão, ansiedades instáveis e um silêncio inquietante (Hall, 1996).
Em síntese, sob a perspectiva dos Estudos Culturais implica considerar que esse campo teórico nos forneça sólidos avanços no processo de significação das práticas culturais, presentes nos tecidos urbanos da cena contemporânea. O que equivale a dizer que, sobretudo, não só reconhece a autonomia de ação, na troca de signos, significados e sentidos, mas também viabiliza a constituição de novas narrativas, não numa perspectiva unilinear, mas com aberto a entendimentos diversos.


Referências Bibliográficas

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VALLADARES, Licia do Prado. A gênese da favela carioca: a produção anterior às ciências sociais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol.15, n.44, p.5-34, outubro 2000.___________________________. A invenção da favela – Do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: Ed. Fund. Getúlio Vargas, 2005.
[1] Homi K. Bhabha, nasceu na Índia (1949) é Professor de Literatura Inglesa e Americana e de Estudos Afro-americanos na Universidade de Harvard. Teórico do pós-colonialismo, Bhabha desenvolveu sua noção de hibridismo nos seus trabalhos sobre o discurso colonial.
[2] O termo hip-hop na verdade designa um conjunto cultural vasto que deriva daí seus quatro elementos artísticos: MC, master of ceremony, mestre de cerimônia ou rapper, a pessoa que leva a mensagem poética-lírica à multidão, que acresce às técnicas do freestyling, o livre improviso e o beat-box, que são sons reproduzidos pelas próprias cordas vocais dos rappers cuja característica de percussão guarda semelhança de efeito com um toca-discos ao acompanhar o MC; o DJ, disc-jóquei, aquele que coloca a música para dançar; a dança break, para aqueles que se expressam por meio de movimentos da dança; o grafite, as artes plásticas e a arte visual no hip-hop. A cultura hip-hop, como uma alternativa para a violência e um sentido para escapar das duras realidades urbanas, alastra-se e polariza-se cultural e comercialmente ao reivindicar para si o papel de voz marginal(izada) da imensa geração de jovens diante da implacável colonização econômica do mundo globalizado. Ver: MARTINS, Rosana. O Estilo que ninguém segura. São Paulo: Esetec, 2005.

[3] Pedro Vicente Alves Pinto, 40, brasileiro de São Paulo é dramaturgo e artista visual, estreou no teatro com o texto “Banheiro” em 1996. Da geração paulistana dos anos 90, é o primeiro de uma série de textos que unem a busca da transcendência, do humor negro e da crítica ao comportamento urbano. Roteirista de cinema e televisão (TV Cultura, Nickelodeon, e outras), em 2007 assina o roteiro do filme “Poeta da Vila”, de Ricardo Van Steen, sobre o compositor Noel Rosa. Em 2008 expôs suas obras na Casa do Lago, na Universidade de Campinas, São Paulo e Weekend Galery em Berlim, Alemanha.
Para acessar os trabalhos do artista Pedro Vicente ver: Arqueiro Sangue Bom em Praga. In:http://www.youtube.com/watch?v=4KSW_hW6q8I; A Invasão dos Triolhos. In: http://www.youtube.com/watch?v=XKqJLFliOjk;
http://mutanteobliquo.blogspot.com/; http://obliquomutante.blogspot.com/

[4]Informação obtida com o artista Pedro Vicente, por e-mail, no dia 20 de abril de 2009.
[5]Sticker art tem como objetivo expor idéias, de modo com que a arte interaja com o ambiente urbano de forma simples, ao meio caótico em que vivem. Popularizado na década de 1990 entre grupos urbanos, da cultura alternativa, vertem ideologias, desejos e mensagens que a um olhar mais atento, se tornam impactantes. Ver: http://www.dialogosfelafacs.net/75/articulos/pdf/75RitaAlves.pdf. Acesso em 12 de abril de 2009
[6] Informação obtida: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u435161.shtml. Acesso em 12 de abril de 2009.

[7] Favela é um tipo de aglomeração/moradia urbana, amplamente disseminada pelas metrópoles do Brasil, e concentra domicílios com elevado grau de carências socioeconômicas, tanto em termos de oferta de serviços públicos, quanto relativas a infra-estrutura urbanística e renda pessoal dos moradores. Além disso, muitas destas áreas estão também sujeitas a riscos ambientais, estando localizadas – por exemplo - em encostas sujeitas a deslizamentos e em fundos de vale sujeitos a inundações.

[8] Exemplo disso foi o triste episódio ocorrido no mês de junho de 2008. Três jovens da Providência foram entregues por militares a traficantes do morro da Mineira, morro vizinho, controlado pela ADA - Amigos dos Amigos, facção rival do CV (Comando Vermelho), que domina a Providência. Os três foram mortos e seus corpos jogados em um aterro sanitário. As reportagens sobre os três rapazes assassinados levaram J.R. a inserir o morro da Providência em sua rota, mas outras informações contribuíram para a escolha.





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